Um psiquiatra com quem converso me disse que a maior parte de nossa atividade cerebral está relacionada a limitar nossas impressões. Recebemos impressões demais, e o cérebro está encarregado de atenuar tudo. O problema, portanto, com “pessoas como você”, como ele diz, é que temos “filtros inadequados”. Em outras palavras, nossos cérebros não filtram bem, impressões demais são registradas.
Digamos que as nossas impressões sejam um buraco em um pedaço de papel através do qual podemos olhar. Há diversas perfurações em torno do buraco, e podemos observar diversos lugares que nos são muito desagradáveis, em termos pessoais, lugares que, nos termos que o psiquiatra propõe, pessoas com bons filtros não veem. Esses podem ser os lugares que mostramos em nossos filmes, que podem parecer experimentais aos olhos dos outros. Mas a “única” questão é que temos maus filtros. Conseguimos olhar através da folha de papel. Estamos olhando há muito tempo. É por isso, igualmente, que você se torna capaz de criar coisas interessantes de olhar. É como propiciar aos espectadores um pequeno vislumbre de coisas mais fantásticas.
Texto
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Me chamem de Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue.
Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível.
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E agora, para terminar, retomemos o nosso tema inicial que é o saber, a norma culta na democratização do ensino. O que vem a ser isso? Vem a ser o seguinte. O professor deve convencer-se de que uma língua histórica (português, francês, espanhol), não é uma realidade homogênea e unitária; ela está dividida em várias línguas, de acordo com as variedades regionais, as variedades sociais e as variedades estilísticas.
Cada variedade dessas tem uma tradição linguística e essa tradição é um modo correto, é uma maneira de correção da linguagem. Agora, todas essas variedades linguísticas confluem na língua exemplar, que é a língua de cultura. Então, a língua exemplar não é nem correta, nem incorreta, porque correto na língua é o que está de acordo com uma tradição. Se existe, por exemplo, uma tradição coloquial que diz “chegar em casa”, esse é o padrão de correção na língua exemplar. Agora, o “chegar à casa” já é uma eleição cultural, que é exclusiva da língua exemplar.
De modo que quando os consultórios gramaticais dos nossos jornais falam: isto está certo, isto está errado – na realidade, não é isso. Cada modo de dizer tem o seu padrão de correção; entretanto, todos esses padrões convergem, por eleição, a uma forma exemplar. Essa forma exemplar é a forma que está na língua literária, quando o escritor sabe trabalhá-la artística, cultural e idiomaticamente.
Então, o que acontece? A democratização do ensino consiste em que o professor não acastele o seu aluno na língua culta, pensando que só a língua culta é a maneira que ele tem para se expressar; nem tampouco aquele professor populista que acha que a língua deve ser livre, e portanto, o aluno deve falar a língua gostosa e saborosa do povo, como dizia Manuel Bandeira. Não, o professor deve fazer com que o aluno aprenda o maior número de usos possíveis, e que o aluno saiba escolher e saiba eleger as formas exemplares para os momentos de maior necessidade, em que ele tenha que se expressar com responsabilidade cultural, política, social, artística etc.
E isso fazendo, o professor transforma o aluno num poliglota dentro da sua própria língua. Como, de manhã, a pessoa abre o seu guarda-roupa para escolher a roupa adequada aos momentos sociais que ela vai enfrentar durante o dia, assim também, deve existir, na educação linguística, um guarda-roupa linguístico, em que o aluno saiba escolher as modalidades adequadas a falar com gíria, a falar popularmente, a saber entender um colega que veio do Norte ou que veio do Sul, com os seus falares locais, e que saiba também, nos momentos solenes, usar essa língua exemplar, que é o patrimônio da nossa cultura e que é o grande baluarte que esta Academia defende.
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Há muito tempo, resumi O estrangeiro em uma frase que, reconheço, é bastante paradoxal: em nossa sociedade, todo homem que não chora no enterro de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte.
O que eu queria dizer era apenas que o herói do livro é condenado porque não jogou o jogo. Nesse sentido ele é estrangeiro à sociedade onde vive e na qual é um ser errante pelos bairros periféricos da vida privada, solitária, sensual. E foi por isso que alguns leitores foram tentados a considerá-lo um delinquente.
Teremos no entanto uma ideia mais exata do personagem – pelo menos, mais de acordo com as intenções de seu autor – se nos perguntarmos em que sentido Meursault não joga o jogo. A resposta é simples: ele se recusa a mentir. Mentir não é apenas dizer o que não é. É também, e principalmente, dizer mais do que é, no que diz respeito ao coração humano, dizer mais do que se sente. É o que fazemos todos, todos os dias, para simplificar a vida. Meursault, ao contrário do que as aparências indicariam, não quer simplificar a vida. Ele diz o que é, recusa-se a mascarar seus sentimentos e, aí, imediatamente a sociedade se sente ameaçada. Pedem-lhe, por exemplo, que diga que se arrepende de seu crime, segundo a fórmula consagrada. Ele responde que se sente mais aborrecido do que propriamente arrependido em relação a seu crime. E é essa nuança que o condena.
Portanto, Meursault não é, para mim, um delinquente, mas um homem pobre e nu, apaixonado pelo Sol que não deixa sombras. Longe de ser desprovido de sensibilidade, uma paixão profunda, porque tenaz, o anima: a paixão pelo absoluto e pela verdade. Trata-se ainda de uma verdade negativa, a verdade de ser e de sentir. Sem ela, no entanto, nenhuma conquista sobre si mesmo jamais será possível.
Assim, não estaria muito enganado quem lesse em O estrangeiro a história de um homem que, sem nenhuma atitude heroica, aceita morrer pela verdade.
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Descobri hoje que te amei desde aquele dia, logo que chegaste ao Rio em casa da Amelinha.
Foi assim. Quisera naquele tempo que só quando fazia música o mundo era bom. Tocar, palco, palmas, o resto era bem o resto.
Certo dia te conheci, pinguinho de gente, nem real, nem criança, nem bichinho, nem pessoa. De pé, na frente de um enorme piano, e correndo as mãozinhas tão pequenas que nem os dedos apareciam com a velocidade dos movimentos.
Era tão cômico, era tão comovente e era tão diferente. Era qualquer coisa fora deste mundo, não dava para classificar de feio ou bonito.
Neste momento, vendo bem tudo aquilo, eu vejo que te amei porque disse para mim mesma: que bom, ele já tem o seu mundo; também para ele o resto será bem o resto.
Novembro, 1983.
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– Qual a sua primeira lembrança musical?
– Antes, sinto necessidade de contar uma história. Quando mamãe morreu, eu tinha uns 3 anos, mais ou menos. Lembro de estar no quintal da casa, batendo latas, imitando a banda da cidade. Porque eu tinha uma bandinha: uns cinco meninos, tudo nuzinho, porque lá é muito quente e porque a gente era pobre. Então, eu estava batendo lata e alguém veio me chamar: “Moacir, venha cá pra você ver sua mãe!”. Eu não sabia o que era morte, mas eu cheguei lá e senti que estava faltando alguma coisa nela. Aí, foi (correr para a) parede do quarto e chorar. Então (nesse dia) eu estava batendo lata. Isso aí é o pivô da história, isso aí eu lembro. Muito digno de mencionar.
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O nosso trabalho teve uma grande dificuldade, porque todos os anos alagava e esse ano não teve água em nosso trabalho. Ficou bom porque os poraquês não iam mexer com a gente, mas ficou ruim porque a gente carregava a juta numa distância de mais ou menos quinhentos metros para chegar na beira do rio. Aí a gente colocava a juta lá na água, afogava e, quando passava o motor, dava o banzeiro e escangalhava as jangadas. Tirava o pau de cima da juta, aí ela caía. Nós de novo afogávamos a juta até amolecer pra gente lavar.
Outra coisa é que de primeiro, quando não existia esse trabalho de juta, as pessoas não eram doentias. Eu ainda cheguei a ver uma senhora que morreu com 115 anos de idade. Mas, hoje em dia, nós jovens com 15 ou 25 anos já estamos cheios de reumatismos, dores nas pernas, cansados. Por quê? Tanto trabalho na juta, dentro d’água e, de primeiro, não. Quando não existia a juta a gente só trabalhava em roça, cacau, feijão, milho, melancia, e outras plantações. Nós, hoje em dia, só sabemos trabalhar é na juta velha.
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Em toda coisa que fazemos há sempre um grão de outra que a precedeu, e as sugestões podem vir, sem que nos demos conta, de mil direções e de longas distâncias.
[…] […] [Tinha] o desejo de fazer um filme sobre uma mãe que, sentindo-se quase dona de seus filhos, quer desfrutar da energia deles para livrar-se das “necessidades cotidianas”, sem levar em conta a diversidade de caracteres nem as possibilidades de seus rapazes, para os quais mira ambiciosamente alto, mas é derrotada; depois, me interessava também o problema da urbanização, através do qual era possível estabelecer um contato entre o Sul miserável e Milão, a modernamente progredida cidade do Norte. […] [É a] história de Rosaria, uma senhora lucana enérgica, forte, obstinada, mãe de cinco filhos ’’fortes, belos, sãos’’ que são, para ela, como os cinco dedos da mão. Morto o marido, atraída pelo milagre da grande cidade do Norte, para fugir da miséria muda-se para Milão.Mas a cidade não reserva aos cinco rapazes a mesma sorte: Simone, que parece o mais forte e que é, na realidade, o mais fraco, perde-se e mata uma mulher.
Rocco, o mais sensível, o mais complexo espiritualmente, obtém um sucesso que para ele – que se sente responsável pela desgraça de Simone – é uma espécie de autopunição: vai se tornar célebre no pugilismo, uma atividade que lhe é repugnante porque, quando está no ringue, em frente ao adversário, sente desencadear-se dentro de si um ódio por tudo e por todos; um ódio do qual foge quase com horror.
Ciro, o mais prático, o mais sensato e o mais concreto dos irmãos, será o único a urbanizar-se completamente, a tornar-se uma unidade da comunidade milanesa, cônscio de seus novos direitos e de seus novos deveres.
O menorzinho, Luca, talvez um dia volte a Lucânia, quando também lá as condições de vida tiverem mudado, enquanto Vincenzo se contentará com uma vida modesta, porém segura ao lado de sua mulher.
[…] [Em um primeiro esboço do final,] Rocco morreria durante uma luta, que ele disputava sabendo não estar em condições físicas de boxear; em outro final previsto, Rocco deixava-se prender no lugar do irmão.Afinal achamos o final atual (a aceitação, como autopunição, de uma atividade odiada), que me parece conter tanto a melodramaticidade do primeiro desfecho quanto a artificiosa mecânica do segundo.