52

Você tem medo de fazer amor comigo
Você tem medo de acordar com um bandido
E ver no espelho escrito com batom:
– Tchau, trouxa, foi bom!

Você não sabe de onde eu tiro o meu dinheiro
Você não sabe o que eu faço o dia inteiro
E esse mistério destrói a nossa paz
Ah, não posso mais

Não me pergunte nada, me deixe apenas vendo
Seu corpo lindo vindo para mim
E não se esconda tanto pois o seu corpo chama
Um outro corpo solto sobre o seu que eu bem sei
É o meu

Você suspeita que eu não seja um bom sujeito
E não entrega seu amor a um suspeito
Mas mesmo tentando jamais conseguirá
Não me desejar

Tapas e Beijos
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51

Não conheço nada, em todo o Drama, mais incomparável, do ponto de vista da Arte, ou mais sugestivo em sua sutileza de observação, do que o retrato que Shakespeare faz de Rosencrantz e Guildenstern. Eles são os amigos de colégio de Hamlet. Foram seus companheiros. Trazem consigo recordações de dias agradáveis passados juntos. No momento em que o encontram na peça, Hamlet está cambaleando sob o peso de um fardo intolerável para uma pessoa de seu temperamento. Os mortos saíram da sepultura para impor-lhe uma missão, simultaneamente muito grande e demasiado cruel para ele. Hamlet é um sonhador, e é chamado à ação. Tem uma natureza de poeta, e é chamado a misturar-se com as vulgares complexidades de causa e efeito, com a vida em sua realização prática, da qual nada sabe, não com a vida em sua essência ideal, da qual sabe bastante. Ele não tem a menor ideia do que fazer, e sua loucura é fingir-se louco. Brutus usou a loucura como uma capa para esconder a espada de sua finalidade, o punhal de sua vontade, mas para Hamlet a loucura é uma mera máscara para esconder a fraqueza. Ele vê nas graças e caretas uma oportunidade de adiar as coisas. Ele continua a jogar com a ação como um artista joga com uma teoria. Faz-se o espião das próprias ações e, ao ouvir suas próprias palavras, sabe que não são senão “palavras, palavras, palavras”. Em vez de tentar ser o herói de sua própria história, busca ser o espectador da própria tragédia. Descrê de tudo, inclusive de si mesmo, e contudo sua dúvida não o ajuda, pois não provém do ceticismo mas de uma vontade dividida.
     De tudo isso Guildenstern e Rosencrantz nada sabem. Inclinam-se e troçam e riem, e o que um diz, o outro repete com desagradável reiteração. Quando, por fim, graças à peça dentro da peça e ao namoro dos fantoches, Hamlet “captura a consciência” do rei e afasta o miserável homem de seu trono, Guildenstern e Rosencrantz não veem em sua conduta mais do que uma quebra bastante dolorosa da etiqueta da corte. Isso é tudo o que eles são capazes de atingir ao “contemplarem o espetáculo da vida com emoções adequadas”. Estão fechados ao seu segredo nada conhecem dele. Nem valeria a pena contar-lho. São copos pequenos, que conseguem conter um tanto e nada mais.
     Mais para o fim da peça, sugere-se que, pegos numa armadilha inteligentemente armada por outra pessoa, encontraram, ou pode ser que tenham encontrado, uma morte súbita e violenta. Mas um fim trágico desse tipo, ainda que tocado, por intermédio do humor de Hamlet, com um pouco da surpresa e da justiça da comédia, não é para pessoas como eles. Eles nunca morrem. Horatio, que, para “narrar corretamente Hamlet e sua causa aos insatisfeitos”,
     O afasta da felicidade durante algum tempo,
     E, neste mundo cheio de dureza, respira de dor,
morre, embora longe do público, e não deixa nenhum irmão. Mas Guildenstern e Rosencrantz são tão imortais quanto Ângelo e Tartufo, e deveriam estar no mesmo nível deles. São a contribuição da vida moderna para o antigo ideal de amizade. Quem escrever uma nova De amicitia tem de encontrar um lugar para eles e louvá-los em prosa tusculana. São tipos fixados para sempre. Censurá-los mostraria falta de gosto. Estão apenas fora de sua esfera: é tudo. Não há contágio no que respeita à sublimidade da alma. Pensamentos elevados e emoções elevadas são, por sua própria natureza, isolados. Aquilo que a própria Ofélia não era capaz de compreender não haveria de ser compreendido por “Guildenstern e o gentil Rosencrantz”, por “Rosencrantz e o gentil Guildenstern”.

Tapas e Beijos
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50

Pessoal intransferível,

     Faz tempo que temo perguntar isto (faz tempo que temer e tremer são verbos diários, solidários):
     “O que foi que nos aconteceu?”
     “Nada”, respondem a solidão e o medo.
     “Nada”, dizem os dias que passam.
     Apenas em mim mora essa equivocada pergunta, essa pergunta que é meu erro e meu crime.
     Talvez até peça perdão um dia, por formulá-la. E, em nome dos velhos tempos, talvez venha até a obtê-lo. E, como filha pródiga, possa voltar ao morar daquele filme que fizemos juntos, o “Nenhum a menos”.
     Sei, no entanto, que no momento sou mesmo uma criminosa, uma dissidente. E no meio do caminho o que vejo sem parar é uma pedra no meio do caminho, uma pedra no meio do caminho, uma pedra. E que nunca me esquecerei.
     Aqui fora está muito frio, mas é de fato aqui fora que moro agora.
     Aqui fora a confiança é pouca. Tudo é pobre. Mas é aqui fora que vivo agora.

Tapas e Beijos
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49

Quem deseja passar bem por portas abertas deve prestar atenção ao fato de elas terem molduras firmes: esse princípio, segundo o qual o velho professor sempre vivera, é simplesmente uma exigência do senso de realidade. Mas se existe senso de realidade, e ninguém duvida de que ele tenha justificada existência, tem de haver também algo que se pode chamar senso de possibilidade.

Quem o possui não diz, por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui poderia, deveria ou teria de acontecer isto ou aquilo; e se lhe explicarmos que uma coisa é como é, ele pensa: bem, provavelmente também poderia ser de outro modo. Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. Vê-se que as consequências dessa tendência criativa podem ser notáveis, e lamentavelmente não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. Essas pessoas com senso de possibilidade vivem, como se diz, numa teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais; crianças com essa tendência são educadas para se libertarem dela, e lhes dizemos que tais pessoas são utopistas, sonhadores, fracos, e presunçosos ou críticos mesquinhos.

Quando os queremos elogiar, também chamamos esses loucos de idealistas, mas obviamente tudo isso apenas se relaciona aos espécimes frágeis, que não podem entender a realidade, ou talvez fujam dela; portanto, pessoas nas quais a ausência de senso de realidade é uma falha. Mas o possível não abrange apenas os sonhos de pessoas de nervos fracos, e sim os desígnios divinos ainda desconhecidos. Uma experiência possível, ou uma verdade possível, não são iguais à experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em si algo divino, um fogo, um voo, um desejo de construção e uma utopia consciente, que não teme a realidade mas a trata como missão e invenção. Afinal, a Terra não é tão velha, e aparentemente nunca foi muito abençoada. […]

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48

Ponto sem nó

você não dá

ponto sem nó

ponto cruz

ponto cheio

ponto ajour

jura que não

vive sem nós

mas nunca diz

a que veio

mon amour

nosso enredo enrolado

todo emaranhado

tecido por linhas tortas

foi desfiado

a trama é toda sua

personagem principal

quanto a mim

resta o papel vilão

do ponto final

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47

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.

Tapas e Beijos
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46

  Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
     – Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas… E riu. Você não é bugre? – ele continuou. Que sim, respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas – Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os araticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática.

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45

Justiça vidente

As minhas palavras de pedra

Hoje as quero rolando pelas ladeiras

Nas mãos dos moleques de rua,

Rompendo telhados de vidro

Dos antigos maus vizinhos, das caras da cor da lua

Quero as palavras de pedra pelas ruas da cidade.

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44

Uma besta

     Era o Ano Novo estourando: caos de lama e neve, travessia de mil carruagens, glamour de brinquedos e guloseimas, rebuliço de cobiças e desesperos, delírio oficial de uma cidade grande feito para abalar a mente do mais sólido dos solitários.
    No meio desse tumulto e dessa gritaria, um burro trotava vivamente, atormentado por um infeliz armado de um açoite.
    Quando o burro ia virando a esquina, um cavalheiro enluvado, envernizado, cruelmente engravatado e preso em trajes luzidios, inclinou-se cerimoniosamente diante da humilde besta e lhe disse, tirando o chapéu: “Te desejo um feliz aninho!”. E virou-se para não sei que camaradas com ar de fatuidade, como que para rogar-lhes que juntassem aprovação ao seu já contentamento.
    O burro não viu esse belo pândego, e continuou correndo com diligência seu caminho de deveres.
    Quanto a mim, fui subitamente tomado de uma incomensurável cólera contra aquele magnífico imbecil, que me pareceu resumir em si todo o espírito da França.

Tapas e Beijos
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Quem dá mais?
Por um samba feito
Nas regras da arte
Sem introdução
E sem segunda parte
Só tem estribilho
Nasceu no Salgueiro
Exprime dois terços
Do Rio de Janeiro
Quem dá mais?
Quem dá mais
De um conto de réis?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três…

Tapas e Beijos
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