62

    O de que mais gosto num filme é sentir o tempo passando numa cena. Sempre deveria haver lugar para o tempo. Um filme deve respirar naturalmente. Quando a gente sai, coloca uma armadilha para a realidade, de modo a persuadi-la a conformar-se ao estado de espírito que preparamos para ela. Estamos relaxados, atentos, não engajados. As coisas acontecem quando acontecem. Somos exatamente tão espertos e tão estúpidos quanto os peixes. Podemos sair quando quisermos, em qualquer direção, e às vezes deparamos com um momento mágico. É o que buscamos, mas não devemos ser muito gulosos, ou muito seguros de nós mesmos.
     A experiência nos diz que esses momentos existem. Em nosso trabalho, estamos providos de nosso instinto, de nossos olhos e de nossos ouvidos. Nos concentramos tanto no espaço vazio quanto no espaço ocupado. Observamos o silêncio e o barulho. Confiamos nos presentes ilimitados do acaso, e no entanto o lugar onde nos encontramos não é necessariamente fruto do acaso. O momento surge bruscamente, quando não nos surpreendemos com sua aparição. Eis-nos aqui. Estamos prontos para capturá-lo, aceitá-lo. Não sabemos aonde ele nos levará. Seguimos a corrente, olhamos aonde ela quer ir e o que quer fazer da gente. Nós a observamos enquanto toma forma e se junta, mas é preciso captá-la enquanto ainda está acontecendo, antes que esteja muito definida. Estamos apaixonados. Um sentimento nos sacudiu, tentamos percebê-lo durante sua passagem superficial, mas temos medo de perdê-lo compreendendo-o bem demais.

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61

     Não há psicanálise sem risco, e o risco da sedução precisa entrar nela, muito embora seja um dos mais sérios neste empreendimento. Mas é possível aceitá-lo sem fugir dele, ao contrário de Don Juan, que incendiava o coração das belas para safar-se na manhã seguinte. O analista contribui com toda a certeza, com sua pessoa e com sua posição na situação analítica, para desencadear fenômenos da ordem da sedução, e isto tanto no paciente quanto em si mesmo. Toda a gama destes fenômenos vai desfilar entre o divã e a poltrona: fantasia de seduzir o analista por parte do paciente, sedução da atenção exclusiva por parte do analista; segredos e trejeitos por parte do paciente, interpretação gratificante por parte do analista – e gratificante, por vezes, apesar do conteúdo manifesto do seu enunciado; busca do domínio do desejo do analista por parte do paciente, que quer sair da situação analítica e realizar suas fantasias na “realidade exterior”, autossatisfação envaidecida do analista por ter obtido este ou aquele resultado com uma interpretação; docilidade aparente do paciente, que às vezes sonha o que o analista espera que ele sonhe, docilidade aparente do analista, que suprime a manifestação de suas emoções em nome da neutralidade a priori benevolente… Mas, se a análise é a análise da transferência – e a análise silenciosa da transferência do analista sobre seu paciente se inclui aí – o analista não vai abandonar a partida, nem se servir do poder de sedução para assujeitar o desejo do outro. Movido pela sedução, ele pode contorná-la ou entrar nela, jogando uma de suas facetas contra a outra – carícia e trauma, ela pode funcionar de várias maneiras no delicado jogo da interpretação. Mas é certo que o analista não é senhor da sedução, nem da sua, nem daquela que sobre ele é exercida.
     Se tiver sorte, o psicanalista pode ajudar seu paciente a descobrir que ninguém é indispensável para que o outro possa viver, que ninguém é indispensável como objeto de amor, a começar por ele mesmo e a terminar pela pessoa do paciente. E assim se explica algo que vocês devem ter notado: que, ao falar da sedução na situação analítica, nos afastamos um pouco da ópera de Mozart. Dela, a cena que mais lhe conviria é aquela em que Donna Elvira, resolutamente convicta de que está falando com seu amado Don Giovanni, faz as mais ardentes declarações de amor a Leporello: figuração plástica da grandeza e da miséria da transferência. Um pouco de interpretação selvagem: não estaria eu, apesar dos grandes elogios ou talvez por causa deles, procurando afastar o personagem do analista do personagem de Don Juan?  Pois não resta dúvida de que, embora Mozart o tenha transformado num símbolo pregnante, o cavalheiro andaluz continua a exalar um certo perfume de enxofre… É possível; e seria ainda mais sedutor, porque implicaria vocês – ouvintes e leitores desta conferência – numa manobra de reconforto narcísico perfeitamente donjuanesca: nós aqui e ele lá.  Não deixa de ser atraente atribuir ao psicanalista o papel de um Don Juan menos brutal e menos autoritário, imaginando que a faísca que ele transmite às virgens que seduz encontre algum paralelo no movimento da análise. Não é por coqueteria nem por receio de denegrir a psicanálise que o paralelo não será feito: é preciso saber, como dizem os franceses, jusqu’où aller trop loin, até onde se pode ir longe demais. O analista que, complacente com seu próprio narcisismo, se identificasse com o fidalgo a ponto de esquecer que deve unicamente à troca transferencial das capas e dos chapéus a aura com que cinge seu paciente/Elvira – este analista faria bem em reler uma nota que o Comandante incluiu em O Ego e o Id:

     [O êxito da terapia] talvez dependa também da medida em que a pessoa do analista possibilita que o paciente o coloque na posição de seu ideal do ego, o que acarreta a tentação de desempenhar junto ao paciente o papel de profeta, salvador de sua alma ou redentor. Mas como as regras da análise repelem decididamente tal utilização da personalidade do médico, é honrado confessar que aqui deparamos com uma nova limitação para a eficácia da análise. Esta não deve tornar impossível quaisquer reações patológicas, mas criar para o Eu do paciente a liberdade de decidir-se assim ou de outra maneira.

     E é nesta singela diferença que a análise de separa da sedução.

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60

     A primeira atitude do homem diante da linguagem foi de confiança: o signo e o objeto representado eram a mesma coisa. A escultura era uma cópia do modelo; a fórmula ritual uma reprodução da realidade, capaz de reengendrá-la. Falar era re-criar o objeto aludido. A pronúncia exata das palavras mágicas era uma das primeiras condições para sua eficácia. A necessidade de preservar a linguagem sagrada explica o nascimento da gramática, na Índia védica. Porém, ao cabo dos séculos, os homens perceberam que entre as coisas e seus nomes abria-se um abismo. As ciências da linguagem conquistaram sua autonomia tão logo cessou a crença na identidade entre o objeto e seu signo. A primeira tarefa do pensamento consistiu em fixar um significado preciso e único para os vocábulos; e a gramática se converteu no primeiro degrau da lógica. Mas as palavras são rebeldes à definição. E ainda não cessou a batalha entre a ciência e a linguagem.
     A história do homem poderia se reduzir à história das relações entre as palavras e o pensamento. Todo período de crise se inicia ou coincide com a uma crítica da linguagem. De imediato se perde a fé na eficácia do vocábulo: “Tive a beleza em meus joelhos e era amarga”, diz o poeta. A beleza ou a palavra? Ambas: a beleza não é palpável sem as palavras. Coisas e palavras sangram pela mesma ferida. Todas as sociedades passaram por crises de suas bases que são sobretudo crises do sentido de certas palavras. Esquece-se com frequência que, como todas as outras criações humanas, os Impérios e os Estados estão feitos de palavras: são feitos verbais. No livro XIII dos Anais, Tzu-Lu pergunta a Confúcio: “Se o Duque de Wei te chamasse para administrar seu país, qual seria a tua primeira medida? O Mestre disse: A reforma da linguagem.” Não sabemos por onde começa o mal, se nas palavras ou nas coisas; quando, porém, as palavras se corrompem e os significados se tornam incertos, o sentido de nossos atos e de nossas obras também é inseguro. Nietzsche inicia sua crítica dos valores enfrentando das palavras: o que querem realmente dizer virtude, verdade ou justiça? Ao desvendar o significado de certas palavras sagradas e imutáveis – precisamente aquelas sobre as quais repousava o edifício da metafísica ocidental –, minou os fundamentos dessa metafísica. Toda crítica filosófica se inicia com uma análise da linguagem.

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59

    Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar…” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem… Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho...

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58

     Você e eu também temos a personalidade que aparece e os seus fundos, e quem vê nossa cara (que é o nosso avesso, como escreveu a Clarice Lispector) nem sempre adivinha a confusão que tem lá atrás. Os pratos voando, o xingamento, a fumaça. Por trás de cada ato e cada frase dita há uma engrenagem oculta e todo o mundo é só a ponta visível do seu próprio iceberg, cuja extensão pouco varia, seja você intelectual ou manicure. A cara que apresentamos aos outros é como o prato que chega bem montado na mesa, sem vestígio do turbilhão em que se originou. Se os outros vão aceitá-lo ou mandá-lo de volta à cozinha é outra história.
     Uma peça de teatro ou um filme também são como o salão de um restaurante, o resultado apresentável de uma retaguarda cuja complexidade e desorganização nem se imagina. A cozinha com vitrine equivale à incorporação dos bastidores à peça, a todo filme ter junto o seu “making of” e ao turbilhão interior de cada um estar na cara.
O que não é totalmente ruim. Existe um certo prazer estético em conhecer o outro lado, como o avesso de uma tapeçaria em que se vê o mesmo desenho da frente mas com as costuras e as sobras de linha à mostra – e que muitas vezes tem mais caráter do que o lado certo. Caráter, afinal, é isso: costuras e sobras de linha aparecendo. Inclusive as nossas.

[…]

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57

Os sábios perfeitos da Antiguidade eram tão agudos,
tão subtis, tão profundos e tão universais que não se podia conhecê-los.
Não podendo conhecê-los, era necessário esforço para os compreender:
Eram prudentes, como quem passa um vau no Inverno;
Hesitantes, como quem teme os seus vizinhos;
Reservados como um convidado;
Instáveis como o gelo que funde;
Concentrados como o tronco de madeira bruto;
Extensos como o vale;
Turvos como a água lamacenta.
Quem sabe pelo repouso passar pouco a pouco do escuro ao claro?
E, pelo movimento, da calma à atividade?
Quem quer que preserve em si uma tal experiência não deseja ser satisfeito.
Não estando satisfeito, pode experimentar o habitual e renovar-se.

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56

Quem disse que a pintura deve parecer-se com a realidade?
Quem o disse vê com olhos de não entendimento
Quem disse que o poema deve ter um tema?
Quem o disse perde a poesia do poema
Pintura e poesia têm o mesmo fim:
Frescura límpida, arte para além da arte
Os pardais de Bian Lun piam no papel
As flores de Zhao Chang palpitam
Porém o que são ao lado destes rolos
Pensamentos-linhas, manchas-espíritos?
Quem teria pensado que um pontinho vermelho
Provocaria o desabrochar da primavera?

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55

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)

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54

     Estava muito intrigado pela ideia de que uma pessoa só pode descobrir seus aspectos positivos se encontrar alguém que as revele. A gente se torna melhor vivendo para alguém. Ao lutar, Maria descobre a humildade. Fiz vários filmes depois de Confiança, e todos eles mostram a mesma coisa: pessoas que se educam a si mesmas, como Maria. Insisto muito nessa necessidade de conhecimento e também sobre a humildade. Deveríamos nos lembrar de que não sabemos tudo e que é impossível aprender tudo. Apesar disso, a luta para saber é essencial. Essencial para mudar seu mundo e para aliviar a dor.
     Faço filmes para estudar como as pessoas tomam decisões. Para mim é a única definição válida da moral. Não se pode escapar a considerações éticas quando se tenta simplesmente olhar para a maneira pela qual as pessoas tomam decisões. A ética se resume realmente a isso, a partir de certo ponto.
     A única coisa sobre a qual todas as religiões estão de acordo é que nada mudará enquanto os seres humanos não se erguerem acima de seu egoísmo. Aqui, uma garota sofre por causa de seus erros, de ideias erradas e do que lhe aconteceu. Tudo isso a destrói. Queria examinar como é possível se aproximar da santidade sem ser religioso. Ao mudar, ela muda as pessoas em torno de si. Pode-se definir um santo desta maneira: alguém que consegue modificar os outros apenas modificando-se a si mesmo.

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53

Sou um ano mais velho do que o seu correspondente e sinto-me jovem pelas razões exatamente opostas às dele. Tenho trinta e oito anos e sinto-me mais novo cada ano, porque todos os anos estou mais próximo de nunca ter realizado coisa alguma na vida. S realização envelhece-nos. Tudo tem o seu preço: o preço da realização é a perda da juventude. Só a falta de objetivos e um modo de vida inconsequente – se a palavra “modo” pode ser aplicada a uma tal ausência de rumo – nos mantém jovens. Não me casei e por isso mantive livre tanto dos prazeres especiais como dos cuidados próprios dessa espécie de parceira; e o bem e o mal desse estado são igualmente envelhecedores. Nunca assentei numa profissão ou num rumo de vida, nem sequer numa opinião que durasse mais que o minuto passageiro em que foi defendida. Nunca tive uma ambição que um belo dia (e Lisboa tem sobretudo dias belos, em todas as estações) ou um vento leve que não dissipassem e reduzissem a um sonho agradável e acidental. Nunca fiz um esforço real atrás de coisa alguma, nem apliquei fortemente a minha atenção exceto a coisas fúteis, desnecessárias e ficcionais. Sinto-me jovem porque tenho vivido dessa maneira.

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