82

 a)
Outros autores me impressionaram; alguns até mais do que Montaigne; mas nenhum me seduziu mais do que ele, nenhum me pareceu tão próximo, tão familiar, tão simpático (a palavra é fraca, mas a coisa não), tão justo, tão fraterno e amigo. Ele é o mestre dos mestres, porém muita coisa mais. Ele, que queria fazer da amizade uma arte, o que a morte ou o destino impediram,  fez da arte uma espécie de nova ocorrência da amizade, tão preciosa quanto a outra, tão rara quanto a outra, mas simplesmente, contra a morte ou o tempo, um pouco – só um pouco – menos frágil…

b)
Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:

vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,

enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.

Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,

assim tu também não és mais para mim

do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.

Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.

Tapas e Beijos
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81

     Maria Cecilia Loschiavo dos Santos chegou até o morador de rua no viés de uma outra pesquisa. Há quase 20 anos, dedica-se ao estudo do design e, especialmente, do mobiliário da casa burguesa.
     “Comecei a ficar impressionada com a forma como as pessoas jogavam os móveis fora. É muito comum encontrar cadeiras e sofás descartados nas calçadas”, conta. “Fui seguindo a rota desses objetos abandonados e me deparei com muitos dos chamados clássicos do design entre cobertores, colchões e sobras de outros produtos industriais nas casas dos moradores de rua, que eles próprios definem como mocós.” Nas andanças sob as pontes, viadutos, a pesquisadora identificou pernas, assentos e encostos de móveis famosos. “Vi muitos pedaços de poltronas Charles Eames, de cadeiras de aglomerado laqueado de Geraldo de Barros. Identifiquei restos das cópias da Poltrona Mole, assinada por Sérgio Rodrigues, da poltrona Sacco criada por Gatti, Paolini e Teodoro, entre tantos outros dispersos a esmo pela cidade, compondo criativamente um outro espaço, desenhando uma nova paisagem urbana.” Nesse contexto, Maria Cecília viu os clássicos passarem por um processo de demistificação. “O fetiche que envolvia esses objetos que denotavam a ascensão social tinha se dissipado. Comecei a perceber um antidesign entre os moradores de rua, que também não deixa de ser uma cultura criativa nascida da luta pela sobrevivência.”

Tapas e Beijos
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80

     As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive e tenho.
     E, apesar de admirar a inteligência pura, acho mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade inteligente. Inteligentes são quase a maioria das pessoas que conheço. E sensíveis também, capazes de sentir e de comover. O que, suponho, eu uso quando escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto imediatamente.
     Suponho que este tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, como dom, pode ser abafado pela falta de uso ou aperfeiçoar-se com o uso. Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa constantemente esse dom. O resultado então é o que eu chamaria de coração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os outros como um verdadeiro radar.

Tapas e Beijos
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79

Tapas e Beijos
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77

A recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói, ou pelo menos perturba: quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; quem feriu expulsa a recordação até as camadas profundas para dela se livrar, para atenuar seu sentimento de culpa.
[…]
Todo aquele que tenha suficiente experiência das coisas humanas sabe que a distinção (a oposição, diria um linguista) boa-fé/má fé é otimista e iluminista (…). Pressupõe uma clareza mental que é de poucos e que mesmo esses poucos perdem imediatamente quando, por um motivo qualquer, a realidade passada ou presente neles provoca ânsia ou mal-estar.
[…]
Manter separadas a boa e a má-fé é custoso: requer uma profunda sinceridade consigo mesmo, exige um esforço contínuo, intelectual e moral.

Tapas e Beijos
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72

Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a forma mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura. Sabendo-se desprezível, apresenta-se com nomes supostos, e como exemplo cito minha pobre avó, que conhecia seu ciúme como reumatismo.

Tapas e Beijos
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71

   Não nego que seja do maior interesse para a Igreja e para o Estado manter um olhar vigilante sobre a conduta dos livros como sobre a dos homens; e em seguida, retê-los, aprisioná-los e puni-los com o maior rigor, como a malfeitores. Porque os livros não são, de jeito nenhum, coisas mortas; eles têm em si uma potência de vida tão ativa quanto a da alma de que são filhos. Mais do que isso: os livros conservam, como frascos, a eficácia e a essência mais puras da mente viva que os engendrou. Sei que são tão cheios de vida e tão vigorosamente fecundos quanto os dentes do fabuloso dragão: se forem semeados aqui e ali, deles podem brotar homens armados. Por outro lado, entretanto, matar um bom livro é quase como matar um homem; e quem mata um homem, mata uma criatura racional, a imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro, mata a própria razão, mata a imagem de Deus nos olhos em que mora. Muitos homens vivem como fardos inúteis da terra; mas um bom livro é o precioso sangue vital do espírito superior, embalsamado e cuidadosamente conservado para uma vida que ultrapassa a vida. É verdade que não há era capaz de restaurar uma vida, e talvez esse desaparecimento não constitua uma grande perda; e, na sucessão das eras, é raro que se recupere uma verdade perdida e rejeitada, e essa ausência é prejudicial para nações inteiras. Tomemos, pois, maior cuidado na perseguição aos trabalhos vivos dos homens públicos, no modo como derramamos essa vida humana experiente, conservada e armazenada nos livros, porque vemos que assim se pode cometer uma espécie de homicídio, por vezes um martírio e, se isso atinge toda a imprensa, até mesmo uma espécie de massacre, que destrói não apenas uma simples vida, mas fere a quintessência etérea que é o sopro da própria razão, de tal forma que aniquila, mais do que uma existência, uma imortalidade.

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70

Palavra – sf.

Aquilo

Que se mostra

À primeira

Vista;

Aspecto;

Ar:

Tem palavra de pessoa fina.

Aquilo que parece

Realidade sem o ser;

Ilusão;

Fingimento;

Disfarce:

Seu interesse no caso era pura palavra.

Filos.

Simulação da realidade e, portanto, ocultamento de uma realidade

Diferente.

Filos.

Manifestação, total ou parcial, da

Realidade.

Tapas e Beijos
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