Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
Tapas e BeijosTapas e Beijos
O eu do texto acima simpatizaria com o eu do texto abaixo?
Diz-se que o luto, com seu trabalho progressivo, apaga lentamente a dor. Eu não podia nem posso acreditar nisso, porque, para mim, o Tempo elimina a emoção da perda (não choro), eis tudo. Quanto ao resto, tudo ficou imóvel. Porque aquilo que eu perdi não é uma Figura (a Mãe), mas um ser; e não um ser, mas uma qualidade (uma alma); não o indispensável, mas o insubstituível. Eu podia viver sem a Mãe (todos nós podemos mais cedo ou mais tarde); mas a vida que me restava seria certamente e até o fim inqualificável (sem qualidade).
(Roland Barthes. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1980.)
FonteFonte Alberto Caeiro. Trecho do poema XLVI, ‘Deste modo ou daquele modo’.