12

Que te dizer? Várias coisas me ocorrem. Que, apesar de atordoada, não fiquei exatamente surpresa com o que você me contou. Ou “decepcionada”. Me refiro à sua antipropaganda de si próprio. Posso dizer que lamento, sinceramente, que você esteja tão descontente consigo mesmo e com sua vida. Mas nosso “repertório” comum – Fernando Pessoa, José Régio, Hal Hartley… – não é composto propriamente de gente contente, certo? De modo que, quando eu te disse que gostava de você e confiava em você, eu estava levando em conta a enorme dose de escuro que, obviamente, nos cerca. Não sabia se você era o homem elefante, por exemplo. Ou um jogador inveterado em fim de linha. Ou um pai de família infeliz no casamento. Ou um Marlon Brando. Ou… as hipóteses eram quase infinitas.
     Mas, por trás desse escuro, eu via, sempre, algo que me encantava. O quê? Talvez a palavra seja: interlocutor. Capacidade de ouvir e responder ao que ouviu. Coisa que sua carta, por mais porrada que tenha sido (e foi!), apenas confirmou. Acho que você ouve – o que não é pouca coisa. Acho que você escreve se expressando, usa a palavra pra se expressar – o que também não é pouca coisa. Para mim. Meu modo particular de ser louca preza muito (talvez demais) isso. 
E chego à parte da sua mensagem que me incomodou de fato. Que é a história do “nós”. De jeito nenhum me sinto parte de um “clube de eleitos”, muito menos de um clube de “sensíveis à arte”. Quando digo “nós”, Josué, estou usando uma palavra com uma longa história pessoal. Não saberia resumir o que “nós” quer dizer para mim e para as algumas pessoas com quem venho construindo minha vida. Pra não me alongar demais, resumo assim: quando digo “nós”, Josué, não estou fechando nada: estou abrindo. Por isso usei a palavra confiança, e quis tanto te mandar o filme pelo correio: para mim, essa é uma palavra-chave, que abre um horizonte de troca entre pessoas e bichos diferentes entre si, porém com algo, essencial, em comum: a vontade sincera de chegar ao outro. E isso, Josué, eu senti logo de cara nas suas mensagens, e continuo sentindo.
     É isso. Quanto à internet: ótimo que ela seja uma janela pra você.
     Espero que possa (queira) me ver através dela.

Tapas e Beijos
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11

Cabeçada excepcional na bola e, de repente, o gol inesperado foi marcado, in extremis: estamos salvos. Cabeçada no tórax do adversário, e de repente o cartão vermelho, o abatimento, as lágrimas e a saída de campo: estamos danados.

O herói trágico, para além dos contrários, desafia nossas esperanças, e ao mesmo tempo se define na afirmação de um caráter épico que tem asperezas com as quais nós podemos nos identificar e através das quais podemos sofrer com ele mas também, às vezes, partilhar sua vitória.

O gesto de Zidane sacrifica a vitória humana, o sucesso imediato no jogo humano, em prol de sua dignidade trágica. A explicação que deu, em entrevista na televisão, confirma esse gesto sacrificial: ele não lamenta nada embora peça perdão por tudo, e não se permite nem mesmo contar qual foi o insulto que ouviu.

[…]

O herói é forçosamente incompleto, tocado por um sentimento que subitamente o enternece ou pela cólera que o põe fora de si. Mas é essa incompletude que o leva para além de si mesmo. Esse sacrifício imuniza sua imagem contra a fadiga, a uniformidade, o fechamento do sentido. A fraqueza heroica de Zidane faz toda a força de uma história mítica que agora pode ser contada. A epopeia abriu-se com o cartão vermelho: talvez se fale da cabeça de Zidane como do calcanhar de Aquiles, dimensão frágil e mortal, parte inacabada e, portanto, infinita de seu corpo de glória.

Tapas e Beijos
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10

José

Olha o que foi, meu bom José
Se apaixonar pela donzela
Entre todas a mais bela
De toda a sua Galileia

Casar com Deborah ou com Sarah
Meu bom José, você podia
E nada disso acontecia
Mas você foi amar Maria

Você podia simplesmente
Ser carpinteiro e trabalhar
Sem nunca ter que se exilar
Que se esconder com Maria

Meu bom José, você podia
Ter muitos filhos com Maria
E teu oficio ensinar
Como teu pai sempre fazia

Por que será, meu bom José
Que esse seu pobre filho um dia
Andou com estranhas ideias
Que fizeram chorar Maria

Me lembro às vezes de você
Meu bom José, meu pobre amigo
Que desta vida só queria
Ser feliz com sua Maria

Tapas e Beijos
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9

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro,  as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
    O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus –, um soldado descansava.
    Descansava… havia três meses.
    Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…
    E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
    Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço, apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras, firmes num ressalto da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Tapas e Beijos
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8

O entendimento de um ser humano exige da pessoa que pretenda entendê-lo que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais ele será para ela um morto, e ela, um morto para ele.
     A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem a pessoa que sentir simpatia pela outra que se propõe conhecer.
     A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do outro, sem que se veja.
     A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível as manifestações da pessoa; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Um dos fins da inteligência, na análise de pessoas, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está em baixo. Não poderá fazer isso se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e a pessoa poderá ser interpretada.
     A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras coisas e pessoas, que permitam que o outro seja iluminado por várias luzes, relacionado com várias outras pessoas, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim, certas pessoas não podem ser bem entendidas se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de pessoas diferentes.
     A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma, da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.

Tapas e Beijos
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7

Venho por meio dessas mal traçadas linhas

Comunicar-lhe que fiz um samba pra você

No qual quero expressar toda a minha gratidão

E agradecer de coração

Tudo que você me fez

Com o dinheiro que um dia você me deu

Comprei uma cadeira

Lá na Praça da Bandeira

Ali vou me defendendo

Pegando firme dá pra tirar mais de mil por mês

Casei, comprei uma casinha lá no Hermelino

Tenho três filhos lindos,

Dois são meus, um de criação

Eu tinha mais coisas pra lhe contar

Mas vou deixar pra outra ocasião

Não repare a letra

A letra é de minha mulher

Vide verso meu endereço

Apareça quando quiser

Tapas e Beijos
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6

Eu estava na região da Somme, numa cidadezinha chamada Marchélepot, onde vi o eclipse em condições meteorológicas um pouco desiguais. O que me espantou foi ao mesmo tempo a simplicidade e a poesia do fenômeno. Poesia menos pelas imagens que pela noite, ou antes uma espécie de penumbra profunda, que caiu sobre nós por dois minutos e meio.
     Com o eclipse, a gente se sente não apenas no mundo, mas no universo. Nossa relação com a natureza muda de escala. Não é mais a árvore que está diante de mim, ou o mar diante do qual me bronzeio, mas uma abertura para algo de muito mais longínquo, que põe em relação dois planetas e uma estrela. Esse é o aspecto mais positivo do progresso dos conhecimentos, o que se pode chamar uma vitória das Luzes. Quando a ignorância e a superstição recuam, abre-se espaço para uma relação mais contemplativa, mais serena, mais verdadeira, mais simples do ser humano com a natureza, isto é, com essa totalidade imensa de que somos uma ínfima parte. É nesse sentido que um eclipse é uma oportunidade de meditar sobre o universo, sobre nosso lugar no universo, logo, de filosofar. Acho que foi assim desta vez, para muitos.
     Nós vivemos dois minutos e meio de eternidade. Esses minutos não foram nem mais nem menos eternos do que os precedentes ou do que os seguintes. A eternidade não vem depois da morte, ela está aqui e agora. Ela é o presente sempre presente. No fundo, o eclipse nos lembra que a eternidade não está do lado da imobilidade, mas do lado do porvir. Achei muito emocionantes esses dois minutos e meio de escuridão nos quais, de repente, a singularidade muito simples do que estava acontecendo nos tornava maravilhosamente atentos ao ser. Nos demos conta de que é realmente extraordinário estarmos vivos no mesmo instante que o presente, no mesmo instante que o imenso universo.

Tapas e Beijos
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5

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Tapas e Beijos
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4

Dizem que, ao longo do caminho que leva ao farol, antes havia bancos que precisavam se limpos constantemente, porque forçados e colonos, durante seus passeios, escreviam neles e gravavam a faca injúrias sórdidas e todo tipo de obscenidades. São muitos os apreciadores da assim chamada literatura obscena, mesmo em liberdade, mas nos trabalhos forçados o cinismo ultrapassa todos os limites e não pode ser comparado. Aqui, não só os bancos e os muros de quintal, mas até as cartas de amor são repugnantes. É digno de nota que um homem possa escrever e gravar num banco um monte de porcarias, sentindo-se ao mesmo tempo perdido, abandonado e profundamente infeliz. Um deles já é um velho e diz que o mundo não lhe interessa mais e está na hora de morrer; tem um reumatismo terrível e seus olhos mal enxergam, mas com que avidez ele solta ininterruptamente uma enxurrada de palavrões de cocheiro, recorrendo a xingamentos obscenos e rebuscados, como um exorcismo contra a febre. E se souber escrever, então, até na solitária ele terá dificuldade de reprimir o ímpeto e resistir à tentação de rabiscar na parede, mesmo com a unha, alguma palavra proibida.

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3

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
    Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Tapas e Beijos
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