Não posso viver sem minha arte. Mas jamais coloquei essa arte acima de tudo. Se ela me é necessária, ao contrário, é porque não se separa de ninguém e me permite viver, tal como sou, no nível de todos. A arte não é, a meus olhos, um gozo solitário. É um meio de emocionar o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Ela obriga portanto o artista a não se apartar; ela o submete à verdade mais humilde e mais universal. E aquele que – o que é frequente – escolheu seu destino de artista porque se sentia diferente, aprende bem rápido que só alimentará sua arte – e sua diferença – se confessar sua semelhança com todos. O artista se forja nesse perpétuo ir e voltar de si mesmo aos outros, a meio caminho entre a beleza sem a qual não consegue viver e a comunidade da qual não se pode arrancar. Eis por que os verdadeiros artistas não desprezam nada; eles obrigam a compreender em vez de julgar. E se têm um partido a tomar neste mundo, só pode ser o de uma sociedade em que, segundo as grandes palavras de Nietzsche, não reinará mais o juiz e, sim, o criador, seja ele trabalhador ou artista.
Ao mesmo tempo, o papel do escritor não se separa dos deveres difíceis. Por definição, ele não pode se pôr hoje a serviço daqueles que fazem a história: está a serviço daqueles que a ela estão submetidos. Se não, ei-lo só e privado de sua arte. Todos os exércitos da tirania com seus milhões de homens não serão capazes de livrá-lo da solidão, mesmo e sobretudo se consentir em andar no mesmo compasso que eles. Mas basta o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações do outro lado do mundo, para retirar o escritor do exílio, pelo menos a cada vez que ele consegue, em meio aos privilégios da liberdade, não esquecer esse silêncio e substituí-lo pelos meios da arte.
Nenhum de nós é suficientemente grande para uma tal vocação. Mas em todas as circunstâncias de sua vida, obscuro ou provisoriamente célebre, jogado aos ferros da tirania ou livre por algum tempo para se exprimir, o escritor pode reencontrar o sentimento de uma comunidade viva que o justificará, com a condição de aceitar, tanto quanto puder, as duas cargas que fazem a grandeza de seu ofício: o serviço da verdade e o serviço da liberdade. Já que sua vocação é reunir o maior número de homens possível, não pode acomodar-se na mentira e na servidão que, onde reinam, fazem proliferar as solidões. Quaisquer que sejam nossas enfermidades pessoais, a nobreza de nosso ofício irá se arraigar sempre em dois engajamentos difíceis de manter: a recusa em mentir sobre o que sabemos e a resistência à opressão.
Depois de ter falado da nobreza do ofício de escrever, terei recolocado o escritor em seu verdadeiro lugar, não tendo outros títulos além dos que partilha com seus companheiros de luta, vulnerável mas obstinado, injusto e apaixonado pela justiça, construindo sua obra sem orgulho nem vergonha, à vista de todos, sempre dividido entre a dor e a beleza, e devotado enfim a tirar de seu ser duplo as criações que busca obstinadamente edificar no movimento destruidor da história.
Texto
31
Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!”.
30
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas. Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental – que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas inesperadas trajetórias. E há os que leem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela…
Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas creem numas coisas e noutras não. Tudo é crivei.
Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.
29
É a história de um anjo triste.
Ele anda num jardim, desde infinitamente.
O jardim é imenso, sem cerca. A grama são chamas. As macieiras são ouro.
Quando alguém morde uma fruta, um dente se quebra, mas logo nasce outro.
De vez em quando, o anjo ergue os ombros, perde algumas plumas, suspira profundamente: sempre a mesma coisa, que tédio.
Decide então viajar ao exterior. Destino: Terra.
Oh, não por muito tempo. Um século ou dois.
Escolhe o meio de transporte mais rápido: a dor, que do céu à Terra caminha na velocidade de um raio.
Vai viajar, portanto, numa lágrima.
Ei-lo agora numa nuvem, alguns instantes antes da tempestade.
A queda começa, ele desmaia.
Acorda.
Diante dele, um mato seco, sem grama.
Percebe onde está: no olho úmido de um cavalinho. Que lamenta sua sorte, sonha com pastos eternos, imensos, sem barreiras.
Quem passa olha o magrelo animal. Riem do pobre bicho, que come uma maçã podre.
Não veem: enganchadas nos ramos de uma árvore, estão suas duas asas, desplumadas.
28
Dei sobre a minha mudança da literatura para o cinema várias explicações.
A primeira foi: pensei que queria mudar de técnica. Toda a minha produção literária é caracterizada pelo fato de que mudei várias vezes de técnica literária. Pensava que o cinema pudesse ser uma nova técnica.
Hoje compreendi que aquilo não era verdade, porque o cinema não é uma técnica literária, mas uma outra língua.
Então pensei, de uma maneira talvez um pouco aventurosa e exagerada, que passei ao cinema, isto é, a uma outra língua, para abandonar o italiano, para fazer uma espécie de protesto contra o italiano e contra a sociedade italiana, uma espécie de renúncia da nacionalidade italiana.
Mas nem isso é uma explicação suficiente.
A verdadeira explicação, na minha opinião, é esta: eu disse que o cinema é uma língua. Uma língua transnacional, trans-racial, quer dizer, um negro de Gana, um americano, um italiano, quando usam a língua do cinema, fazem isso da mesma maneira. É um sistema de signos que vale para todas as possíveis nações do mundo. E qual é a característica principal desse sistema de signos? O de representar a realidade não através de símbolos, como são as palavras, mas através da própria realidade. Por exemplo, se quiser representar você, represento você através de você, ou através de outra pessoa, mas de carne e osso, análoga a você. Então represento a realidade usando a própria realidade. Isso me permite, fazendo cinema, ou seja, usando esse meio de expressão artística, viver sempre no nível e no coração da realidade.
27
Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas.
Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O saber de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai apreendendo, como do que elabora.
26
”Só que isto aqui é tão solitário! disse Alice, melancólica; e à ideia de sua solidão duas grossas lágrimas lhe rolaram pelas faces.
”Oh, não fique assim!” exclamou a pobre Rainha, torcendo as mãos em desespero. ”Considere a menina grande que você é. Considere a longa distância que percorreu hoje. Considere que horas são. Considere qualquer coisa, mas não chore!
Alice não conseguiu deixar de rir disso, mesmo em meio às suas lágrimas. ”Você consegue parar de chorar fazendo considerações?”, perguntou.
”É assim que se faz” disse a Rainha com muita decisão; ninguém pode fazer duas coisas ao mesmo tempo, não é? Para começar, vamos considerar a sua idade… quantos anos tem?”
”Exatamente sete anos e meio.”
”Não precisa dizer ‘exatualmente”’, a Rainha observou. ”Posso acreditar sem isso. Agora vou lhe dar uma coisa em que acreditar. Tenho precisamente cento e um anos, cinco meses e um dia.”
”Não posso acreditar nisso!” disse Alice.
”Não?” disse a Rainha com muita pena. ”Tente de novo: respire fundo e feche os olhos.”
Alice riu. “Não adianta tentar”, disse, “não se pode acreditar em coisas impossíveis.”
”Com certeza não tem muita prática” disse a Rainha. ”Quando eu era da sua idade, sempre praticava meia hora por dia. Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
25
Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por se terem os homens revelado covardes nesse sentido, foi a vida prejudicada imensamente. As experiências a que se dá o nome de “aparecimentos”, todo o pretenso mundo “sobrenatural”, a morte, todas essas coisas tão próximas de nós têm sido tão excluídas da vida, por uma defensiva cotidiana, que os sentidos com os quais as poderíamos aferrar se atrofiaram. Nem falo de Deus. Mas a ânsia em face do inesclarecível não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações de homem para homem, que, por assim dizer, foram retirados do leito de um rio de possibilidades infindas para ficarem num ermo lugar da praia, fora dos acontecimentos. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, diante do qual não nos sentimos bastante fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência.
24
A direção do zoológico Marah Land, na Faixa de Gaza, decidiu pintar dois burros com listras pretas para que ficassem parecidos com zebras numa tentativa de atrair visitantes ao local.
O zoo perdeu muitos animais durante a ação militar israelense contra o território palestino em janeiro. As duas zebras que o zoológico tinha morreram de fome.
Para tentar atrair visitantes, a direção contratou um pintor profissional que usou tinta para cabelo e fita adesiva para pintar os animais com listras e fazer os burros parecerem zebras.
Segundo o gerente do zoológico, Nidal Barood, a decisão de pintar os animais foi tomada porque seria muito caro comprar duas zebras novas.
[…]A direção afirmou que o “disfarce” deu certo e as crianças gostam da nova atração do zoológico.
23
[No Japão,] os pauzinhos têm muitas outras funções, além da de transportar a comida do prato à boca (que é a menos pertinente, já que é também a dos dedos e dos garfos), e essas funções lhes são exclusivas.
Primeiramente, os pauzinhos – sua forma já o diz – têm uma função dêitica: eles apontam a comida, designam o fragmento, determinam o existir do alimento pelo gesto mesmo da escolha (como o dedo indicador). A partir daí, no entanto, a ingestão dos alimentos não segue uma sequência maquinal, na qual os comensais se limitariam a engolir pouco a pouco as partes de um todo. Ao designar o que escolhem (ao escolher isto em vez daquilo), os pauzinhos introduzem no hábito alimentar não uma ordem mas uma fantasia, talvez até uma malícia; uma operação inteligente e não mecânica.
Outra função dos dois pauzinhos é a de pinçar o fragmento de comida (e não a de agarrá-lo, como fazem os garfos). Pinçar é, aliás, uma palavra forte demais, agressiva demais (é a palavra das mocinhas sonsas, dos cirurgiões, das costureiras, dos melindrosos); pois os pauzinhos nunca imprimem ao alimento uma pressão superior à estritamente necessária para erguê-lo e transportá-lo. No gesto dos pauzinhos há algo de maternal (também, ou ainda mais, por sua matéria – madeira ou laca): ele tem a moderação exata e delicada com que pegamos uma criança; trata-se de uma força (no sentido operatório do termo), não de uma pulsão. Revela-se aí todo um comportamento em relação à comida, ainda mais evidente nos longos pauzinhos do cozinheiro, cuja função é preparar os alimentos sem jamais furá-los, cortá-los, fendê-los, feri-los: os verbos que praticam as duas longas hastes são erguer, virar, transportar.
Pois os pauzinhos (terceira função), quando têm que dividir, separam, afastam ou apertam, mas não cortam nem agarram, como fazem nossos talheres. Os pauzinhos jamais violentam o alimento: ou o desembaraçam pouco a pouco (no caso das verduras) ou o desfazem (no caso dos peixes, das enguias), redescobrindo assim as fissuras naturais da matéria (e nisso são muito mais próximos de nossos dedos primitivos do que das facas).
Por fim – e esta é talvez sua mais bela função –, os dois pauzinhos transferem a comida: cruzados como duas mãos, suporte e já não mais pinça, eles deslizam sob o floco de arroz e o suspendem até a boca do comensal; e, num gesto milenar que se repete em todo o Oriente, fazem escorregar a neve alimentar da tigela até os lábios, como uma pá.
Em todos esses usos, por todos os gestos que implicam, os pauzinhos se opõem à nossa faca (e a seu substituto predador, o garfo): são o instrumento alimentar que se recusa a cortar, a agarrar, a mutilar, a furar (gestos muito limitados, relegados à preparação do prato: o peixeiro que esfola diante de nós a enguia viva exorciza de uma vez por todas, num sacrifício preliminar, o assassinato da comida). Por causa dos dois pauzinhos, a comida já não é uma presa sobre a qual exercemos violência (carnes sobre as quais nos arremetemos), mas uma substância harmoniosamente transferida. Os pauzinhos transformam a matéria previamente dividida em comida para pássaros, e o arroz em fluxo de leite; maternais, eles remetem incansavelmente ao gesto do biscato, deixando aos nossos costumes alimentares, armados de espetos e de facas, o gosto da rapina.