72

Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a forma mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura. Sabendo-se desprezível, apresenta-se com nomes supostos, e como exemplo cito minha pobre avó, que conhecia seu ciúme como reumatismo.

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71

   Não nego que seja do maior interesse para a Igreja e para o Estado manter um olhar vigilante sobre a conduta dos livros como sobre a dos homens; e em seguida, retê-los, aprisioná-los e puni-los com o maior rigor, como a malfeitores. Porque os livros não são, de jeito nenhum, coisas mortas; eles têm em si uma potência de vida tão ativa quanto a da alma de que são filhos. Mais do que isso: os livros conservam, como frascos, a eficácia e a essência mais puras da mente viva que os engendrou. Sei que são tão cheios de vida e tão vigorosamente fecundos quanto os dentes do fabuloso dragão: se forem semeados aqui e ali, deles podem brotar homens armados. Por outro lado, entretanto, matar um bom livro é quase como matar um homem; e quem mata um homem, mata uma criatura racional, a imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro, mata a própria razão, mata a imagem de Deus nos olhos em que mora. Muitos homens vivem como fardos inúteis da terra; mas um bom livro é o precioso sangue vital do espírito superior, embalsamado e cuidadosamente conservado para uma vida que ultrapassa a vida. É verdade que não há era capaz de restaurar uma vida, e talvez esse desaparecimento não constitua uma grande perda; e, na sucessão das eras, é raro que se recupere uma verdade perdida e rejeitada, e essa ausência é prejudicial para nações inteiras. Tomemos, pois, maior cuidado na perseguição aos trabalhos vivos dos homens públicos, no modo como derramamos essa vida humana experiente, conservada e armazenada nos livros, porque vemos que assim se pode cometer uma espécie de homicídio, por vezes um martírio e, se isso atinge toda a imprensa, até mesmo uma espécie de massacre, que destrói não apenas uma simples vida, mas fere a quintessência etérea que é o sopro da própria razão, de tal forma que aniquila, mais do que uma existência, uma imortalidade.

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70

Palavra – sf.

Aquilo

Que se mostra

À primeira

Vista;

Aspecto;

Ar:

Tem palavra de pessoa fina.

Aquilo que parece

Realidade sem o ser;

Ilusão;

Fingimento;

Disfarce:

Seu interesse no caso era pura palavra.

Filos.

Simulação da realidade e, portanto, ocultamento de uma realidade

Diferente.

Filos.

Manifestação, total ou parcial, da

Realidade.

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69

a)

     Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho da sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também tem que evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e, como é a expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen [cuidar dele, em alemão].

b)
     Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das páginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O meu livro de cabeceira é a Retórica do Padre Figueiredo, onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez, a descrição, em estilo de um português conventual e certo, as figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes lidos, não fixei ainda. Mas embala-me a linguagem […], e se me faltassem as palavras justas escritas com c dormiria inquieto.

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68

    Se em mim existe um talento digno de respeito, nesse caso eu lhe confesso, à sua pureza de alma, que não o respeitei até aqui. Sentia em mim esse talento, mas formara o hábito de julgá-lo medíocre […]      

Durante os cinco anos de minha vagabundagem nos jornais, acostumei-me a considerar os meus trabalhos com desdém, e comecei a escrever a toda pressa! Esta é a primeira razão [de minha inteligência]. A segunda: sou médico e vivo mergulhado na medicina até o pescoço. O provérbio sobre as duas lebres que não podiam correr ao mesmo tempo não impediu ninguém de dormir tanto quanto eu… Até aqui tratei o meu trabalho literário com extrema leviandade, com negligência, sem refletir. Não me lembro de um só de meus contos sobre o qual me tenha debruçado mais de um dia e esse O Caçador que lhe agradou, escrevi-o numa casa de banhos! Como os jornalistas rabiscam seus textos, da mesma forma escrevo meus contos: maquinalmente, numa semi-inconsciência, sem me preocupar com o leitor nem comigo mesmo […]. Esforçava-me apenas para não usar nesses contos imagens e quadros que me são caros e que, Deus sabe por que, guardava zelosamente.
     […]
     E eis que me cai do céu a sua carta […]. Senti então a necessidade absoluta de me deter, de sair da rotina em que me havia enterrado.
Vou livrar-me do trabalho precipitado, mas sem pressa. Não me é possível sair rapidamente do atoleiro em que me encontro. Prefiro, sim, passar fome, como já me aconteceu, mas não se trata apenas de mim […].
     Toda a esperança está no futuro. Estou com 26 anos. Talvez ainda tenha tempo de fazer alguma coisa, embora o tempo passe tão depressa […].
     Desculpe esta longa carta e seja condescendente com um homem que, pela primeira vez na vida, ousa conceder a si mesmo a alegria de escrever a Grigorovitch.

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67

    

[…] a espera evidencia como o tempo é um recurso e uma fonte de poder. A espera é também uma condição à própria existência dos processos sociais e biológicos, dado que estes comportam um certo grau de entropia que a espera ajuda a dissipar. Assinalamos, assim, que a espera pode ser definida como um espaço-tempo específico, uma duração e um intervalo obrigatório, procurado ou aleatório. De qualquer forma, a espera expressa normas e convenções sociais que presidem à definição das reciprocidades e das sociabilidades, além de demonstrar formas de encarar os horizontes temporais (futuro e passado). Nesta perspectiva, a espera tanto pode sinalizar uma perda como um ganho para as mesmas partes envolvidas numa relação. É pertinente destacar o facto de a espera ser socialmente reproduzível e culturalmente constrangedora. Ao mesmo tempo, a espera é um ato de linguagem e objeto das várias ordens discursivas. Por isso, pode ser perspetivada como um instrumento importante de ação política, tanto na dimensão objectiva (dos planos), como na dimensão da esperança.

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66

João Carlos Sobrinho, conhecido por todo mundo aqui como Fera, viu um dos ’’amigos de prancha’’ morrer em cima do asfalto por conta do tráfico. Daí para maquinar num caderninho como tirar essa juventude do crime foi um pulo: em 2 de fevereiro de 1995 criou a Escola Beneficente de Surfe Titãzinho.

No início as atividades eram simples e não havia muitas pranchas para a garotada entrar no mar e testar as manobras que treinavam na areia. Os humanistas e políticos de plantão também não tinham criado termos elegantes como “Responsabilidade Social”, sobretudo não havia a Secretaria da Juventude (Sejuv) para dar o modesto patrocínio de pranchas e pouco mais de R$ 300,00 mensais. Além do mais, naquele tempo surfar era coisa de malandro. ’’Muitas das pessoas daqui brincavam dizendo que eu era louco porque vivia agarrado toda hora escrevendo aulas de surfe num caderninho’’, lembra João Carlos.

’’Entre outros requisitos o surfe exige, de quem tem como objetivo se manter na crista da onda, sustentar a plena atenção, conhecer o movimento das marés, incluindo a geografia litorânea, aspectos relevantes do clima e do ar atmosférico local.’’

Fera confirma ser fundamental, no treinamento diário, aprender e exercitar na areia as manobras feitas dentro da água. ’’É importante ter tática para aprender mais rápido. Sempre digo para os meninos que é preciso muita vontade para ganhar a vida como surfista.’’ […]    

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65

a)
     Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou não, que cada “estrangeiro é um inimigo”. Em geral, essa convicção jaz no fundo das almas como uma infecção latente; manifesta-se apenas em ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porém, quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, como último elo da corrente, está o Campo de Extermínio. Este é o produto de uma concepção do mundo levada às suas últimas consequências com uma lógica rigorosa. A história dos campos de extermínio deveria ser compreendida por todos como sinistro sinal de perigo.

b)
     Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
     O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

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64

     – Não sei bem o que o senhor entende por glória – disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém.
     – Claro que você não sabe, até eu lhe dizer. O que quero dizer é: “eis aí um argumento arrasador para você.”
     – Mas glória não significa “um argumento arrasador” – objetou Alice.
     – Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom escarninho – ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique… nem mais, nem menos.
     – A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes
     – A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.

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63

Inesquecível


     São 9h20 da noite. Enquanto o avião desliza nervosamente sobre o nordeste da Pennsylvania, não consigo pensar em nada além de memórias. O presente está suspenso; o futuro é meramente estatístico. A esta altitude, o Passado é a única coisa que realmente possuímos.
     Por medo, talvez, sempre que tomo um avião sozinho, brinco assim: fecho meus olhos, fingindo estar dormindo, e tento voltar tão longe quanto possível em meu passado… o nascimento de meu filho, o dia em que levei um tiro, minha primeira viagem a Nova Iorque, minha avó falando com suas panelas.
     Muitas vezes consigo me lembrar direitinho até do tempo em que nada tinha nome e tudo estava imerso num leitoso nevoeiro marrom e amarelo.
     Minha mãe segurando os dedos de minha mão esquerda numa posição incômoda, me ensinando a lembrar o número três… É como se, sabendo minha idade, minha história tivesse começado, e também minha memória. Foi também com três anos que tomei consciência da fotografia, e de como ela suspendia o passado. Posso dizer isso simplesmente observando o jeito como eu “posava” nessa idade. Mal posso me reconhecer em fotografias mais antigas – minha falta de familiaridade com o ato fotográfico fazia de mim um objeto meramente convencional; sem querer, mal consigo me ver como realmente era.
     Em Câmera clara, Roland Barthes nos fala de sua desesperada “busca” por sua mãe entre as fotografias que ela deixou depois de morrer. Nesses retratos, ele só conseguia reconhecer fragmentos dela. “Assim, a fotografia me impeliu a uma dolorosa tarefa; ao me esforçar em captar a essência de sua identidade, eu estava lutando entre imagens parcialmente verdadeiras e portanto totalmente falsas.” Após uma longa e cansativa busca, ele finalmente a encontrou numa jovem posando com seu irmão em frente a um jardim de inverno. “Estudei a moça e por fim redescobri minha mãe. A distinção de seu rosto, a ingênua atitude de suas mãos, a posição que tomou docilmente sem se mostrar ou se esconder e, finalmente, sua expressão, que a distinguia nitidamente da histérica menininha, da boneca sem graça brincando de crescer – tudo isso constituía a figura da inocência soberana”.
     Através da imagem fotográfica podemos lembrar o passado com riqueza de detalhes – uma propriedade que condiciona a ambos, tema e fotógrafo, no processo do próprio ato fotográfico. Um registro “para a eternidade”. O impulso de melhorar a imagem do presente (quando ele for o passado, no futuro) prevalece, fazendo da fotografia uma coleção de memórias internacionais, humores domesticados e cenários editados.
     Fabrica-se um passado perfeito por meio de uma coleção exclusiva de “bons momentos”. (“Maus momentos” só são cultivados – e estetizados – na arena especializada do fotojornalismo de massa.)
     A fotografia possibilita “compartilhar o passado” com grande facilidade. Contudo, ao olhar para fotografias íntimas de pessoas é impossível reagir emocionalmente com a exata correspondência. Embora a fotografia possa preservar com infinitos detalhes a factualidade de cada momento, esses detalhes são ainda incapazes de trazer de volta o “sentimento” do próprio momento. A fotografia pasteuriza o presente. Na maior parte das vezes, nós revivemos emoções passadas com mais facilidade através de encontros casuais com imagens não específicas. Como aconteceu um dia com Proust, quando, ao se debruçar para tirar suas botas, veio-lhe subitamente o verdadeiro rosto de sua avó, “cuja realidade viva eu estava sentindo pela primeira vez, numa involuntária e completa memória”. Uma imagem qualquer pode também trazer de volta um momento por muito tempo enterrado no passado sedimentário de nossa memória. Então, mesmo se não conhecemos as pessoas ou o lugar retratado na foto, ainda assim podemos encontrar, por vezes, uma inexplicável razão pessoal para reagir.
     Nossa contínua coleta e disseminação de momentos fotográficos chega a uma reestruturação técnica, à criação de uma recordação visual acumulada. O conceito de memória compartilhada foi catalisado num conceito científico de história: somos levados a crer numa memória comum e num passado homogêneo. Nada pode ser mais reconfortante. Esses momentos transcendentais, folhas do álbum da Família do Homem, contam com um tipo de inocência pré-fotográfica, uma absoluta ignorância do ato fotográfico em si. Como se nunca houvesse uma câmera filmando, como se um momento real tivesse acontecido – uma autoria de mão leve, um objeto onipresente.
     Será possível que a fotografia, a mais moderna de todas as mídias, funde seu desenvolvimento como expressão artística centrando-se em tão retrógrada noção? Será possível que essa “inocência” constitua a única vantagem diferencial que a fotografia deveria perseguir? O artista atrás da câmera é o fazedor de genéricas memórias, de madalenas universais. Muito além de registrar a presença física do tema, a câmera registrará um humor, um sentimento, como se fotografasse a própria memória. Ao artista não cabe registar os fatos, mas sim a gama das possibilidades. 
     Agora são 10h15. O avião mal aterrissa sobre a pista bloqueada pela neve. Como que voltando de uma fotografia, retomo minha presença provisória. Paro de rememorar. Está frio lá fora. No estacionamento do aeroporto, um velho Buik tem um para-choque onde se lê:

EM UM MILHÃO DE ANOS ISSO NÃO FARÁ A MENOR DIFERENÇA.

     Num piscar de olhos saco minha câmera da mala e tiro uma foto.

Tapas e Beijos
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