Inesquecível
São 9h20 da noite. Enquanto o avião desliza nervosamente sobre o nordeste da Pennsylvania, não consigo pensar em nada além de memórias. O presente está suspenso; o futuro é meramente estatístico. A esta altitude, o Passado é a única coisa que realmente possuímos.
Por medo, talvez, sempre que tomo um avião sozinho, brinco assim: fecho meus olhos, fingindo estar dormindo, e tento voltar tão longe quanto possível em meu passado… o nascimento de meu filho, o dia em que levei um tiro, minha primeira viagem a Nova Iorque, minha avó falando com suas panelas.
Muitas vezes consigo me lembrar direitinho até do tempo em que nada tinha nome e tudo estava imerso num leitoso nevoeiro marrom e amarelo.
Minha mãe segurando os dedos de minha mão esquerda numa posição incômoda, me ensinando a lembrar o número três… É como se, sabendo minha idade, minha história tivesse começado, e também minha memória. Foi também com três anos que tomei consciência da fotografia, e de como ela suspendia o passado. Posso dizer isso simplesmente observando o jeito como eu “posava” nessa idade. Mal posso me reconhecer em fotografias mais antigas – minha falta de familiaridade com o ato fotográfico fazia de mim um objeto meramente convencional; sem querer, mal consigo me ver como realmente era.
Em Câmera clara, Roland Barthes nos fala de sua desesperada “busca” por sua mãe entre as fotografias que ela deixou depois de morrer. Nesses retratos, ele só conseguia reconhecer fragmentos dela. “Assim, a fotografia me impeliu a uma dolorosa tarefa; ao me esforçar em captar a essência de sua identidade, eu estava lutando entre imagens parcialmente verdadeiras e portanto totalmente falsas.” Após uma longa e cansativa busca, ele finalmente a encontrou numa jovem posando com seu irmão em frente a um jardim de inverno. “Estudei a moça e por fim redescobri minha mãe. A distinção de seu rosto, a ingênua atitude de suas mãos, a posição que tomou docilmente sem se mostrar ou se esconder e, finalmente, sua expressão, que a distinguia nitidamente da histérica menininha, da boneca sem graça brincando de crescer – tudo isso constituía a figura da inocência soberana”.
Através da imagem fotográfica podemos lembrar o passado com riqueza de detalhes – uma propriedade que condiciona a ambos, tema e fotógrafo, no processo do próprio ato fotográfico. Um registro “para a eternidade”. O impulso de melhorar a imagem do presente (quando ele for o passado, no futuro) prevalece, fazendo da fotografia uma coleção de memórias internacionais, humores domesticados e cenários editados.
Fabrica-se um passado perfeito por meio de uma coleção exclusiva de “bons momentos”. (“Maus momentos” só são cultivados – e estetizados – na arena especializada do fotojornalismo de massa.)
A fotografia possibilita “compartilhar o passado” com grande facilidade. Contudo, ao olhar para fotografias íntimas de pessoas é impossível reagir emocionalmente com a exata correspondência. Embora a fotografia possa preservar com infinitos detalhes a factualidade de cada momento, esses detalhes são ainda incapazes de trazer de volta o “sentimento” do próprio momento. A fotografia pasteuriza o presente. Na maior parte das vezes, nós revivemos emoções passadas com mais facilidade através de encontros casuais com imagens não específicas. Como aconteceu um dia com Proust, quando, ao se debruçar para tirar suas botas, veio-lhe subitamente o verdadeiro rosto de sua avó, “cuja realidade viva eu estava sentindo pela primeira vez, numa involuntária e completa memória”. Uma imagem qualquer pode também trazer de volta um momento por muito tempo enterrado no passado sedimentário de nossa memória. Então, mesmo se não conhecemos as pessoas ou o lugar retratado na foto, ainda assim podemos encontrar, por vezes, uma inexplicável razão pessoal para reagir.
Nossa contínua coleta e disseminação de momentos fotográficos chega a uma reestruturação técnica, à criação de uma recordação visual acumulada. O conceito de memória compartilhada foi catalisado num conceito científico de história: somos levados a crer numa memória comum e num passado homogêneo. Nada pode ser mais reconfortante. Esses momentos transcendentais, folhas do álbum da Família do Homem, contam com um tipo de inocência pré-fotográfica, uma absoluta ignorância do ato fotográfico em si. Como se nunca houvesse uma câmera filmando, como se um momento real tivesse acontecido – uma autoria de mão leve, um objeto onipresente.
Será possível que a fotografia, a mais moderna de todas as mídias, funde seu desenvolvimento como expressão artística centrando-se em tão retrógrada noção? Será possível que essa “inocência” constitua a única vantagem diferencial que a fotografia deveria perseguir? O artista atrás da câmera é o fazedor de genéricas memórias, de madalenas universais. Muito além de registrar a presença física do tema, a câmera registrará um humor, um sentimento, como se fotografasse a própria memória. Ao artista não cabe registar os fatos, mas sim a gama das possibilidades.
Agora são 10h15. O avião mal aterrissa sobre a pista bloqueada pela neve. Como que voltando de uma fotografia, retomo minha presença provisória. Paro de rememorar. Está frio lá fora. No estacionamento do aeroporto, um velho Buik tem um para-choque onde se lê:
EM UM MILHÃO DE ANOS ISSO NÃO FARÁ A MENOR DIFERENÇA.
Num piscar de olhos saco minha câmera da mala e tiro uma foto.