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Dizem que, ao longo do caminho que leva ao farol, antes havia bancos que precisavam se limpos constantemente, porque forçados e colonos, durante seus passeios, escreviam neles e gravavam a faca injúrias sórdidas e todo tipo de obscenidades. São muitos os apreciadores da assim chamada literatura obscena, mesmo em liberdade, mas nos trabalhos forçados o cinismo ultrapassa todos os limites e não pode ser comparado. Aqui, não só os bancos e os muros de quintal, mas até as cartas de amor são repugnantes. É digno de nota que um homem possa escrever e gravar num banco um monte de porcarias, sentindo-se ao mesmo tempo perdido, abandonado e profundamente infeliz. Um deles já é um velho e diz que o mundo não lhe interessa mais e está na hora de morrer; tem um reumatismo terrível e seus olhos mal enxergam, mas com que avidez ele solta ininterruptamente uma enxurrada de palavrões de cocheiro, recorrendo a xingamentos obscenos e rebuscados, como um exorcismo contra a febre. E se souber escrever, então, até na solitária ele terá dificuldade de reprimir o ímpeto e resistir à tentação de rabiscar na parede, mesmo com a unha, alguma palavra proibida.

Tapas e Beijos
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Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
    Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

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2

O chefe pegou uma caneta, tirou a mosca do tinteiro e jogou-a num pedaço de mata-borrão. Por uma fração de segundo ela ficou imóvel na mancha escura que se espalhava à sua volta. Depois as patas dianteiras agitaram-se, firmaram-se e, erguendo seu corpinho encharcado, ela deu início à imensa tarefa de limpar a tinta de suas asas. Por cima e por baixo, por cima e por baixo, uma pata passava ao longo de uma asa como a pedra de afiar passa por cima e por baixo da foice. Depois houve uma pausa, quando a mosca, parecendo ficar nas pontas dos pés, tentou abrir primeiro uma asa e depois a outra, Finalmente conseguiu e, sentando-se, começou, como um minúsculo gato, a limpar a cara. Agora era possível imaginar que as patinhas dianteiras esfregavam-se ligeiramente uma contra a outra, alegres. O horrível perigo fora superado; ela escapara; estava pronta para a vida novamente.
    Justamente nesse instante, porém, o chefe teve uma ideia. Mergulhou a caneta de novo na tinta, apoiou o pulso grosso no mata-borrão e, quando a mosca experimentava as asas, uma gota grande e pesada caiu. O que podia ela fazer diante disso? O quê, realmente! A pequena indigente pareceu absolutamente intimidada, atordoada, com medo de se mexer por causa do que aconteceria em seguida. Mas depois, como se penosamente, arrastou-se para frente. As patas dianteiras agitaram-se, firmaram-se, e, desta vez mais lentamente, a tarefa começou do começo.
    Mas ele é um diabinho destemido, o chefe, e sentiu uma real admiração pela coragem da mosca. Era assim que se devia enfrentar as coisas; aquele era o espírito correto. Nunca desanime; era somente uma questão de… Mas a mosca terminara de novo sua laboriosa tarefa, e o chefe teve o tempo exato para encher de novo a caneta e sacudir mais uma gota escura bem em cima do corpo recém-limpo. Como seria desta vez? Seguiu-se um penoso momento de suspense. Mas veja, as patas dianteiras agitavam-se de novo; o chefe sentiu uma onda de alívio. Debruçou-se sobre a mosca e disse-lhe ternamente: “Sua sem-vergonha astuta.” E teve mesmo a brilhante ideia de soprar sobre ela para ajudar o processo de secagem. Apesar disso, havia algo de tímido e fraco em seus esforços agora, e o chefe decidiu que esta seria a última vez, enquanto mergulhava a pena no fundo do tinteiro.
    Foi. A última gota caiu sobre o mata-borrão embebido, e a mosca enlameada ficou ali imóvel. As patas traseiras estavam coladas ao corpo; as dianteiras não podiam ser vistas.
“Vamos”, disse o chefe. “Mexa-se!” E instigou-a com a caneta – em vão. Nada aconteceu ou poderia acontecer. A mosca estava morta.
    O chefe ergueu o cadáver sobre a ponta do corta-papel e jogou-o na cesta de lixo. Mas um sentimento tão opressivo de desolação tomou conta dele que ficou positivamente amedrontado. Avançou e tocou a campainha para chamar Macey.
    “Traga-me mata-borrão novo”, disse severamente, “e rápido.” E enquanto o velho cão se afastava pôs-se a se perguntar sobre o que estivera pensando antes. Fora isso? Fora… Puxou o lenço e passou-o dentro do colarinho. Não conseguiu se lembrar, por mais que tentasse.

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O Mauro Senise escreveu para O Globo sugerindo que se fizesse um Casa dos Artistas ou Big Brother Brasil com a Lígia Fagundes Telles, a Fernanda Montenegro, a Marina Colasanti, a Adélia Prado e a Lúcia Guimarães, e o Jaguar, o Jabor, o Millôr, o Hermeto Pascoal, o Nei Lopes, o Manuel de Barros, o Chico Caruso, o Zuenir e eu. Segundo o Senise, com este grupo “teríamos diálogos inteligentes e papos de alto nível”. Acho ótima a ideia, Senise, mas eu fora. Além de não ter sunga, examinei cuidadosamente a sua lista e cheguei à conclusão de que não poderia contribuir para os diálogos inteligentes e o papo de alto nível simplesmente porque não me deixariam falar! A falsa ideia, entre meus amigos, de que eu falo pouco se deve ao fato de que entre eles eu não tenho oportunidade. Eu não sou quieto, sou é muito interrompido.

Brincadeira. Na verdade, falo pouco desde que ouvi uma frase, na infância, que me impressionou muito. “Em boca fechada não entra mosca”. A decisão de não engolir mosca norteia minha conduta desde então, por isso tenho privilegiado formas de comunicação que não dependem de abrir a boca, como o “hum hum”, o movimento de cabeça e o jornalismo impresso. O que pode parecer ponderação ou vocação literária é medo de mosca.

E as pessoas não se dão conta de como falar é difícil. Enquanto pensa no que vai dizer, você tem que prever a quantidade de ar que precisará para fazê-lo. Depois, deve se ocupar simultaneamente da parte mecânica, de articulação das palavras (movimentos sincronizados de glote, língua e lábios, sem descuidar do adequado suprimento de ar), da parte contextual (coerência, relevância e objetivo da frase) e da parte estrutural (concordância, pronomes no lugar certo, etc.) — e, a todas essas, mantendo-se em alerta contra moscas. Minha admiração por pessoas bem-falantes é a mesma que tenho diante de malabaristas que mantêm cinco bolas no ar ao mesmo tempo. Como é que elas conseguem?!

É verdade que ainda não vi entrar mosca na boca de ninguém, por mais que falem. Mas alguns, decididamente, estão se arriscando.

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